Miriam Pillar Grossi

osvaldino_2017

Miriam Pillar Grossi

Professora e pesquisadora de Estudos de Gênero e do Departamento de Antropologia

“Estou há quase 30 anos na UFSC. Comecei a trabalhar aqui em 1989 como bolsista de pós-doutorado (na época se chamava recém-doutor) do CNPq e em 1991 ingressei através de concurso como professora adjunta. Acompanhei, nestas 3 décadas, uma transformação radical da composição dos alunos, das prioridades da Universidade. O que aconteceu?

Quando eu cheguei aqui, a UFSC já era uma Universidade cosmopolita, com professores de muitos lugares. Nos anos 80 o então reitor, professor Caspar Erich Stemmer, incentivou muito a chegada de professores com mestrado e doutorado, e o professor Silvio Coelho dos Santos, que foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação, teve um papel importante nesta proposta de acolhimento de professores estrangeiros e de outros lugares do Brasil. Veio uma leva de pessoas, um grupo significativo de ex-militantes do movimento estudantil dos anos 70, e também do movimento feminista. Esses professores, entre os quais eu me incluo, tinham um engajamento político de oposição à ditadura militar e eram também engajados nos então chamados novos movimentos sociais.

Chegamos aqui querendo transformar o mundo, e a UFSC era esse mundo para a gente. Foi nessa época que começaram também os grandes movimentos dos professores e que se consolidou uma rede de pensamento crítico dentro da Universidade. Viemos para a UFSC com a utopia de uma vida melhor, em uma cidade pequena, fora dos grandes centros urbanos brasileiros. Florianópolis era então uma cidade paradisíaca, onde se podia experimentar uma proposta de vida alternativa, com menos consumo.

Florianópolis, à época, era um lugar com uma vida cultural muito limitada. Havia um único cinema que passava bons filmes, em São José, no centro histórico. E esse grupo de professores vinha de São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Brasília, e acabou fazendo da UFSC um lugar de produção cultural alternativa.

Naquela época a UFSC era cosmopolita pelos professores; e o que eu vejo agora, nos anos 2010, é que a UFSC é cosmopolita pelos alunos.

Desde a criação dos programas de pós-graduação na UFSC, a Universidade sempre recebeu muitos alunos de outras partes do Brasil; mas, no final dos anos 90, passamos a receber muitos estudantes que vinham do interior de São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Minas Gerais etc. A pós-graduação da UFSC está hoje em um lugar de proeminência nacional, mas sempre atraiu um grupo importante de alunos que vieram, se graduaram, e muitos deles fizeram concurso e ficaram como professores da Universidade.

Houve também, na última década, uma internacionalização muito grande, com alunos africanos, latino-americanos, europeus… A PEC-PG, que se fortaleceu a partir dos anos 2000, foi um programa da CAPES muito importante para a UFSC. À medida que fomos entrando em posições de destaque em rankings internacionais, fomos nos tornando prioritários para receber, pela CAPES, esses alunos estrangeiros. Vieram alunos de Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique; e de toda a América Latina, Argentina, Colômbia, Paraguai, Guatemala, México, Cuba e outros países.

Essas experiências com esses alunos estrangeiros são extremamente enriquecedoras e provocativas para nós e nossos alunos. Eu ando muito pelo mundo, já lecionei nos Estados Unidos, na França, Portugal, Espanha. O que eu tenho visto nas minhas andanças é que a UFSC não perde para nenhuma dessas universidades no quesito de circulação de intelectuais estudantes, professores permanentes ou visitantes. Estamos aqui em um lugar privilegiado de produção acadêmica.

Mas tenho críticas também. A Universidade é de ponta na pesquisa, mas precisa melhorar e muito no campo do ensino. Nossas falhas estão em não conseguirmos incorporar a diversidade na integração dos alunos diferentes. A UFSC foi pioneira na inclusão da diversidade de classe, étnica, do nome social das pessoas trans, de alunos com deficiência. Porém, com a chegada dessas alunas e desses alunos a gente não conseguiu uma efetiva formação do quadro docente da Universidade para transformar nossas práticas pedagógicas na inclusão desses estudantes, que não são aqueles que sempre aprenderam, independentemente dos professores.

São mudanças básicas que precisam ser feitas, como conhecer os alunos que temos em sala de aula, incentivar que eles se conheçam entre eles. Sabe-se, pela pedagogia contemporânea pós-construtivista, que o aprendizado se dá em processo, em questionamento, em diálogo. A gente aprende muito mais com os pares do que com os professores, já dizia Piaget. Cabe à Universidade se transformar na forma de ensinar.

A inclusão tem que se dar de forma econômica, mas também pedagógica e cultural. O que esses alunos nos trazem são outros questionamentos, que não estavam nas práticas antigas e tradicionais de ensino universitário.

É também assustador os números de desistência, de evasão. Nos cursos nos quais eu dou aulas, Antropologia e Ciências Sociais, entram 30, 40, 50 alunos, e poucos se formam por ano. Por exemplo, o curso de graduação em Antropologia, cuja primeira turma entrou em 2010, só formou até hoje dez alunos.

Com o curso de especialização Gênero e Diversidade na Escola (GDE) estamos formando 140 alunos entre os 200 que iniciaram o curso. É uma especialização a distância, e nós tivemos o compromisso pedagógico com a inclusão e com a não evasão. A gente dizia todos os dias para os alunos: “Este curso custa quase R$ 1 milhão para o Ministério da Educação. Quanto menos cursistas se formarem, mais caro vai significar a formação de cada um(a). Continuar no curso é também um compromisso social”.

Exige muito esforço pedagógico, mas não é impossível a evasão zero na Universidade. Permanência com aprendizagem total, esse é o nosso desafio atual. O aluno que evade é o que não aprende, não se sente acolhido em seu processo de aprendizagem. No processo de inclusão e de respeito à diversidade, este é o nosso maior compromisso, o maior desafio: ensinar efetivamente a todos os que entram na UFSC. Não estamos fazendo isso em nenhuma área de conhecimento.

Câncer

Esse último ano da minha vida foi um ano de repensar meu lugar na UFSC. Eu fui diagnosticada com um câncer de mama no final do ano passado, e isso me obrigou a me repensar de forma muito intensa, muito radical. Eu me senti, por um lado, feliz por estar em uma universidade pública, uma instituição que me respeita e me acolhe no tempo em que preciso para me tratar. Mas ao mesmo tempo eu vi que a instituição não se preocupa com a saúde das pessoas. Fiquei doente também pelo trabalho nessa Universidade.

Muitos de nós, pelo menos a minha geração, deu a vida pela Universidade. Fico muito feliz de ver que conseguimos constituir um lugar de excelência tanto nos estudos de Gênero como na Antropologia. Tenho orgulho disso. Mas sinto que o famoso “teto de vidro” está presente na UFSC. Eu vivi e senti isso de forma muito presente nesses quase 30 anos.

Hoje em dia somos um número significativo de professoras na UFSC. Mas efetivamente nas instâncias institucionais, quantas de nós são reconhecidas? Quantas estão nos espaços de poder da Universidade? Quem a UFSC indica para cargos de representação? Em sua grande maioria são homens, apesar de as mulheres serem já em maior número na instituição.

É a questão do reconhecimento: depois de ter ocupado inúmeros cargos na UFSC, de ter estado no conselho técnico-científico da CAPES e na presidência da ABA (Associação Brasileira de Antropologia), não vi esses conhecimentos e saberes acumulados serem reconhecidos e valorizados. Isso é o que pesquisadoras feministas da ciência chamam de “teto de vidro”, ou seja, as mulheres vão avançando na carreira, mas tem uma hora que não se vai mais para frente. Por exemplo, ter direito a um espaço físico condizente para as atividades do laboratório que criei e coordeno há 25 anos. O NIGS Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades trouxe recursos importantes para a área de humanas da UFSC. Nos últimos cinco anos, tivemos mais de dez projetos realizados envolvendo grandes equipes de pesquisa em redes dentro de Santa Catarina, do Brasil e do mundo, para os quais recebemos significativos financiamentos de agências como CNPq, CAPES, FAPESC, SPM, MEC. Mas, até hoje, não temos onde colocar os equipamentos comprados com os recursos recebidos. Temos ainda caixas de computadores fechadas devido à exiguidade do tamanho da sala do NIGS. Isso reflete essa falta de reconhecimento, com um discurso de falsa igualdade que no fundo é permeado de muito preconceito de gênero, articulado com outras interseccionalidades, como área de conhecimento ou objeto de investigação, no interior da UFSC. Se eu fosse um homem pesquisador, de outra área de conhecimento, provavelmente o NIGS já teria tido há muito tempo um espaço físico condizente com sua produtividade acadêmica reconhecida nacional e internacionalmente.

O mesmo se viu em relação ao projeto de INCT que submetemos, pela coordenação do Instituto de Estudos de Gênero (IEG), ao CNPq em torno do grande tema das políticas públicas e das violências de gênero no Brasil. O projeto envolve mais de 100 pesquisadoras doutoras de centros de pesquisa em gênero e sexualidade de todo o país, articulado com inúmeras redes internacionais. Tivemos três excelentes avaliações por parte dos consultores ad hoc, mas, ao ser avaliado por colegas brasileiros, provavelmente de outras áreas de conhecimento, não [o projeto] teve classificação para receber recursos da FAPESC/CNPq em Santa Catarina.

O “Fazendo Gênero” é o maior evento no campo dos estudos de gênero do planeta. A Revista de Estudos Feministas, publicada na UFSC, é uma das mais importantes nessa área de conhecimento na Ibero-América. Quantos cursos de graduação e de mestrado da UFSC formaram 140 pessoas nos últimos dois anos como nós estamos formando pelo GDE (Especialização em Gênero e Diversidade na Escola)? Quem fez isso foi um “não departamento”, um “não programa de pós-graduação”: o IEG um instituto que é quase um Centro de Ensino, pois aglutina um grande número de pesquisadoras de diferentes centros de ensino da UFSC.

Gênero e Sexualidade

Desde os anos 80 nós já tínhamos um núcleo de estudos sobre a mulher na UFSC. Em 1989 foi quando criamos o que hoje é o IEG. Começamos a ter um grupo multidisciplinar trabalhando com gênero e a formar pessoas nessas áreas.

O ensino de gênero e da sexualidade se torna muito importante para uma sensibilização, conscientização, reconhecimento das pessoas. No início, anos 80 e 90, só vinham alunas, depois muitos alunos gays, e hoje também muitos alunos hetero um número similar de moças e rapazes. A questão do feminismo está na ordem do dia para essa juventude. A gente cumpre um lugar que eu acho que é extremamente importante.

Se na minha geração a gente se tornou feminista nas ruas, nos movimentos sociais, para as gerações mais contemporâneas constata-se que se tornaram feministas por meio das pesquisas. O campo acadêmico é que traz questionamentos políticos e que vão atuar no campo da subjetividade. A grande contribuição dos estudos de gênero para a ciência é justamente dar um treinamento teórico-metodológico para as pesquisadoras fazerem aquele processo de autorreflexividade e se verem nas pesquisas que fazem. Na área de humanas isso é mais pertinente, mas também está presente em outras áreas do conhecimento.

Em todas as áreas, o sujeito está presente, e o gênero nos faz pensar nisso. Eu converso muito com os colegas nas engenharias, por exemplo, mostrando que seria fundamental ter uma formação de gênero nesses cursos. Primeiro, para repensar a questão da masculinidade, porque são em sua maioria estudantes homens. E segundo, pela inserção de alunas mulheres nas engenharias, para acabar com os preconceitos. Também pelas relações que esses engenheiros terão, em diferentes espaços sociais, como campos de obra, fábricas e empresas, terão que lidar com pessoas. As questões que nós trabalhamos, no campo dos estudos de gênero, são importantes para qualquer aluno que saia da UFSC.

Assim como já é feito em outras universidades, queremos ter curso de formação de gênero, sexualidade e diversidade para toda a UFSC. É essencial conhecer o outro, mas também se conhecer, entender o que significa o privilégio de estar em algumas posições sociais, que são dadas por gênero, cor, classe, orientação sexual, corporalidades normativas. Só reconhecendo os privilégios que temos, seremos capazes de ter que entender outras posições de sujeito e ter empatia para entender e nos colocarmos no lugar do outro que está excluído e à margem desses privilégios. Os estudos de gênero também nos trazem a reflexão sobre a subjetividade e o afeto. É a partir da emoção que poderemos reconhecer o sofrimento ou a alegria do outro. Assim vamos nos constituir em sujeitos pensantes no mundo, que é a função da Universidade.

Ser lésbica e pesquisadora reconhecida internacionalmente

E como eu me sinto como professora lésbica na Universidade? Durante décadas, este aspecto de minha vida  tinha que ser invisibilizado, porque a UFSC era uma universidade extremamente conservadora. Eu nunca escondi minha orientação sexual atual e que vivo em conjugalidade com uma mulher, também professora da Universidade. Inclusive meu trabalho envolve falar sobre sexualidade e gênero; e o que estudamos é que é importante se assumir enquanto “lésbica”, como uma posição política, compartilhando uma experiência de vida  cada vez mais presente em todos os espaços da sociedade. Hoje sei que dar visibilidade a este aspecto de minha vida é importante também para a instituição.

Quando fui contemplada com a Cátedra Ruth Cardoso na Universidade de Columbia, muitas alunas e colegas me parabenizaram dizendo que eu ter tido a coragem e ter sido beneficiária desta posição era uma forma de se sentirem estimuladas para também concorrerem a outros editais. É, portanto, com alegria que estarei no primeiro semestre de 2017 ensinando nos Estados Unidos, levando para outro espaço institucional os aprendizados e conhecimentos que construí em minha carreira de pesquisadora feminista na UFSC.”