Maristela Campos

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Maristela Campos

Professora de inglês no Colégio de Aplicação

“Eu nasci em Lages. Não imaginava ser docente da UFSC. Eu vim fazer mestrado aqui em 2004, vinha de Lages para cá toda semana, e pensava em ficar na minha cidade depois do mestrado, trabalhar em uma universidade local, particular.

Uma colega de mestrado que era professora substituta no Colégio de Aplicação me avisou do concurso. Decidi fazer só pra ver como era, muitos dos inscritos eram da minha turma de pós-graduação. Eu estava fazendo concursos pelo Brasil, no Paraná, Rio Grande do Sul, para ver o que ia acontecer e acabei passando aqui!

Quando eu cheguei ao Colégio de Aplicação, me senti como um peixe fora d’água. Primeiro que não tinha a expectativa de passar, e segundo porque não sabia muito como ia ser. Chegamos e houve uma grande reunião com os professores para apresentar os novos docentes, éramos mais ou menos 30 docentes. Eu olhei ao redor e era a única professora negra. Fui apresentada assim: “Eu tenho o prazer de apresentar a vocês a primeira professora negra do Colégio de Aplicação”.

No primeiro ano tivemos uma discussão para reformular o plano político-pedagógico do Colégio. Tinha um item de atender as diversidades, e eu apontei que essas diversidades tinham que estar especificadas em diversidade de gênero, classe, cor, raça/etnia. Quando eu falei em cor e raça, a escola ferveu. Metade dos professores foi a favor e metade foi contra. Trabalhei com um grupo de professores para propor alguma coisa para a escola entender o porquê de classificar cor e raça no projeto político-pedagógico. Assim fizemos a primeira Semana da Consciência Negra na escola.

Houve muita resistência, muito professor foi contra. Disseram que eu estava propondo uma separação na escola que nunca existiu, que eu estava dando visibilidade a uma coisa que não existia. E muitas professoras não apoiaram incluir a questão de gênero também. Fiquei preocupada com isso… se nós, como professoras, não colocamos uma posição clara do que nós queremos como mulheres, que exemplo estamos dando para as nossas alunas?

Também tínhamos poucos alunos autodeclarados negros. Tínhamos muitos alunos que, segundo a classificação do IBGE, podem ser classificados como pretos e pardos, mas poucos se autodeclaram. Existe uma negação muito grande, ainda, especialmente no ensino fundamental. As crianças reproduzem muito rápida e abertamente o que elas aprendem. Elas discriminam umas às outras abertamente e especificam qual é a discriminação: ‘Não vou brincar com você porque você é menina’, ou ‘Não gosto de brincar com crianças negras’.

As crianças negras, pretas e pardas começam a negar a sua própria identidade. Então começamos um trabalho de valorização da cultura, de dar visibilidade aos pontos positivos, reforçar positivamente a identidade da criança como menina e também como criança negra.

Eu acho que vim para somar isso no Colégio, como uma das professoras que representa um grupo social lá dentro. É muita coisa querer representar um grupo, mas enfim! Hoje tem um segundo professor negro, de Educação Física; então agora somos dois, estou mais contente!

É desolador, às vezes, se ver sozinha. Em Lages também é assim, em muitos lugares eu era a única pessoa negra. Uma vez fui a Minas Gerais e levei um susto em Belo Horizonte com o número de pessoas como eu. Isso nunca tinha me acontecido, e isso faz muito a diferença. E eu já tenho 47 anos, isso eu já podia ter superado, e a gente não supera. E eu fico imaginando as crianças como se sentem ao olhar ao redor e se verem sozinhas, verem que todo o mundo valoriza um outro padrão e o meu biotipo não é visto, meu fenótipo não conta. Isso acontece muito.

Eu percebo que, nesses sete anos que estou aqui, aumentou muito a diversidade. Está muito melhor que quando eu comecei. Quando eu cheguei aqui, a gente via poucos estudantes negros, e quase nenhum indígena. Hoje esses grupos estão muito mais representados. Isso traz para a Universidade esse caráter que o próprio nome diz, que remete ao Universo, e o Universo é amplo, não é aquele cantinho onde todo o mundo é igual.

A questão das cotas foi fundamental, abriu a Universidade. É claro que a gente gostaria que não precisássemos de cotas, mas organicamente esse atraso de mais de 500 anos não vai ser igualado sem que uma ação ocorra para colocar as pessoas em condições iguais. A gente sabe que não é o ideal. Gostaria que não precisássemos de cotas para ver pessoas de origens, etnias, cores e raças diferentes onde a gente trabalha, nos lugares em que a gente convive. Não é a melhor solução, mas é a única solução.

Foram as cotas que trouxeram essa diversidade. Se elas não existissem, não veríamos tantos rostos diferentes, tantas identidades variadas, trazendo tantas contribuições. Assim a Universidade se abre para diversas formas de ver a vida, diversos conhecimentos, outras formas de perceber o fazer. Eu não consigo imaginar um local onde se quer produzir conhecimento baseado em um único grupo, uma única cultura, um único modo de fazer as coisas. É muito limitado.”